A menina dos gansos
- É muito chato vigiar os gansos – resmungou Katya, aos nove anos de idade, enquanto balançava os pés descalços na água gelada do rio. Ela gostava muito de visitar os avós paterno, baba (vovó, em ucraniano) Katya e dido ( vovô, em ucraniano) Vania, nas férias de verão, mas odiava vigiar os gansos de baba Katya.
As aves enormes de cor branca e cinza granavam suavemente enquanto mordiscavam o capim a margem do rio. Não tinha nada de interessante naquilo. Ela costumava vigiar os mesmo gansos desde que eram pequenos e não se importa nem um pouco se nunca mais os visse.
Os gansos a odiavam. Especialmente o líder. Ele sempre a beliscava com seu bico forte e ligeiro. Como doía! Katya não gostava nada daqueles gansos e eles também não gostavam dela.
Katya deu meia-volta e observou o típico cenário de verão da Ucrânia. Alem do rio, pode ver os dourados campos de trigo, as campinas e a vila em que os avós moravam. A sua direita, viu as pessoas trabalhando na lavoura da fazenda coletiva.
Katya não içou parada por muito tempo.
Logo retirou dois carrinhos do bolso e tentou fazer uma pista no capim alto,mas os carrinhos encalhavam toda hora nas touceiras. Apenas conseguia fazer com que andassem poucos centímetros antes que parassem novamente. Alem disso, não era nada divertido brincar sozinha. Queria que seu cachorro, Hipka, estivesse ali. Ele colocaria aqueles gansos em seu devido lugar num piscar de olhos e também seria uma boa companhia para brincar.
Entediada, ela enfiou os carrinhos no bolso.
Arremessou alguma pedras. Fez uma trança de capim e amarou-a na ponta de um galho. Mergulhou a trança na água, na tentativa de pesca um peixe. Dali um pouco, um peixe se aproximou, mas passou direto sem ver a trança de capim.
Katya jogou o galho ao cão.
- que gansos chatos!- exclamou.
Parece que o líder dos gansos ficou ofentido com o que Katya disse, pois saiu correndo atrás dela, gramando com as asas bem abertas. Katya não perdeu tempo em se desviar da ave.
- saia daqui! Deixe-me em paz! – ela gritou, agarrando novamente o galho e balançando- o o mais rápido que pôde .
Finalmente, conseguiu livrar-se do ganso. ainda reclamando, a ave se afastou para juntar-se ao bando, mas não parava de olhar para trás e grasnar.
- não agüento mais esses gansos – reclamou. – não vou mais vigiar essas aves bobas. Se baba Katya quiser, ela que venha vigiá-los! Vou procurar alguém para brinca comigo.
Katya desenrolou a barra da calça e saiu em direção á vila em que os avos moravam. Disse a si mesma que estava muito feliz por ter deixado os gansos para trás. Afinal, eram aves muito chatas.
Mas, lá no fundo, Katya sabia que estava errada. Baba Katya havia confiado nela para vigiar os gansos. E se uma raposa aparecesse e comesse algum deles? Ou um lobo? Um lobo poderia comer vários de uma só vez. Baba Katya dependia daquelas aves para ganhar o dinheiro necessário para comprar mantimentos para o inverno.
Katya amava muito a vovó. Não queria que ela passasse fome no inverno. Talvez tivesse temado a decisão errada. Talves...
- Katya!
Ela virou-se ao ouvir seu nome. Era Frozina e Annychka, duas amigas da vila, correndo ao seu encontro pela vegetação rasteira.
- Oi, Frozina! Oi, Annychka! O que estão fazendo aqui? Vocês não deveriam estar vigiando os gansos das mães de vocês?
- Ah, os gansos! – exclamou Frozina. – Aquelas aves bobas. Decidimos deixá-los vigiando a si mesmos.
- Mas... e se alguma coisa acontecer? – Katya pergunto.
- Nunca aconteceu nada com eles – Annychka assegurou. – você vai brincar com a gente ou não?
- Sim. Claro que vou brincar.
O medo de Katya de que alguma coisa acontecesse com os gansos passou depois do que as amigas disseram.
- Dê que vamos brincar? – Frozina quis saber. – Vamos brincar de casinha?
- Não , vamos brincar de corrida – insistiu Katya, tirando três carrinho do bolso. – Viram? Tenho três carrinhos. Uma para cada uma de nós. Podemos fazer uma pista de corrida.
Annychka olhou para o pasto.
- Como vamos fazer uma pista no meio desse mato? –perguntou.
- Podemos brincar debaixo da ponte. Lá é um bom lugar para fazer uma pista.
As três meninas se apressaram em direção a ponte de madeira. Logo formaram uma longa “pista” e alinharam os carros para a corrida.
- Um, dois, três e... já!- gritou Katya.
As três meninas começaram a correr agachadas, cada uma empurrando seu carrinho.
De repente, Frozina virou com tudo para a esquerda e bateu em Katya, que esbarrou em Annychka, e as duas se estabelaram no chão.
- Você fez de propósito – gritou Katya.
Frozina caiu na gargalhada.
- Bem feito! Vocês perderam – ela falou ainda correndo – e eu venci .
O rosto de Katya ficou vermelho. Parecia que ia explodir de tanta raiva. Num salto, ela se levantou do chão, pronta para revidar.
Frozina empalideceu ao ver a amiga nervosa vindo em sua direção. Ela tentou correr, mas era tarde demais. Katya se jogou para cima da menina, derrubou-a ao chão e encheu-a de bofetões.
- Você trapaceou! Trapaceou! – gritou Katya.
- Pare! Pare! – Frozina implorou tentando proteger o rosto com as mãos, mas Katya nem deu bola.
Annychka começou a puxar a blusa de Katya.
- Pare com isso. Por favor!
Ainda sentada em cima de frozina, Katya ordenou:
- Peça desculpas.
- Desculpe-me – Frozina disse, engolindo em seco.
- Tudo bem – respondeu Katya, saindo de cima da amiga.
- mas nunca mais trapaceie de novo – ela avisou com tom de ameaça. – da próxima vez, não vou parar tão cedo.
Frozina concordou com a cabeça. Cuidadosamente, ela pegou o carrinho e as três meninas começaram a brincar outra vez. Começaram a cavar o chão para alonga a pista e a briga logo foi esquecida. Elas fincaram pequenos galhos ao longo da pista ara imitar árvores: as touceiras de mato se ternaram casas.
Depois de um tempo, começaram a fingir que os carros eram veículos militares de países em guerra. Passaram um bom tempo atacando umas as outras.
Assim que ficaram cansadas, sentaram-se ao lado da pista, tentando imaginar outra brincadeira.
- já sei – disse Frozina depois de pensar por alguns instantes.- Podemos brincar de fogueira.
Boa idéia!- concordou Katya.
Essa era uma de suas brincadeiras prediletas. Mas onde poderiam brincar?
- tem uma pilha enorme de palha atrás da minha casa – disse Frozina. – Podemos usar um pouco.
- Os seus pais não vão achar ruim? – Annychka quis saber.
- Vamos usar só um pouquinho. Eles nem vão perceber – Frozinha garantiu.
Mesmo assim, Annychka não tinha certeza se queria participar da brincadeira.
- Vamos lá, Annychka. O que você é? Uma covarde? Eu a desafio – falou Katya com ar de valentia.
Annychka não podia desistir depois de ser desafiada. Assim, as três meninas saíram correndo em direção a vila e entraram sorrateiramente no quintal da casa de Frozina.
-Estão vendo? Ali está pilha – Frozina apontou.
Sem demora, cada umas fez um pequeno monte de palha e apostaram para ver qual delas conseguiria fazer o fogo surgir mais rápido.
- Eu venci! – gritou Katya triunfante. – olha só a fumaça subindo.
Sem duvida nenhuma, a pilha de palha de Katya estava começando a pegar fogo, pois tinha bastante fumaça. De repente, ela virou uma bola de fogo.
- Oba! Eu venci, vocês perderam – provocou Katya.
Nesse momento, uma rajada de vento bateu contra o monte de palha em chamas e pequenas centelhas de fogo se espalharam pelo gramado.
- Depressa, apague o fogo! - gritou Frozina. – Você vai acabar queimando a minha casa!
- Vamos queima a vila inteira se não controlarmos o fogo! – gritou Annychka.
As meninas começaram a correr de uma lado para o outro do quintal. Pisando em cada centelha de fogo que encontravam pela frente.
- Frozina! – ouviu-se a voz de uma mulher chama.
As crianças gelaram. Será que tinham sido apanhadas?
- Venha jantar - a voz ordenou.
Frozina deu um pulo e saiu correndo.
- Os gansos! Tenho que pegar os gansos da minha mãe!
E desceu a rua em disparada na direção do campo.
- É melhor eu ir também – disse Annychka. – minha mãe deve estar me procurando - e lá foi ela.
Mas Katya era a corredora mais rápida da vila – mais ágil até mesmo do que os meninos. Não demorou muito e ela ultrapassou as duas amiga enquanto as três corriam em direção ao campo para apanhar os gansos.
Ao chegar ao pé da colina onde tinha deixado os gansos de baba Katya, levou o maior susto. Os gansos tinha sumido! O que iria dizer a baba Katya? Aquelas aves eram sua fonte de renda. Como se explicaria?
Com um suspiro, Katya começou a andar vagarosamente pelo caminho de volta a vila. Tentou imagina uma historia convincente para explicar o sumiço dos gansos. Mas não conseguiu pensar em nada.
Ao se aproximar da pequena casa dos avós, viu dido Vania sentado na varanda tomando sol. Ele estava com cara de bravo.mas até ai, tudo bem, pois ele sempre parecia bravo. Durante a Segunda Guerra Mundial, dido Vania foi ferido nas pernas e nas costas. Não podia trabalhar. Isso o deixava muito nervoso. Ele reclamava muito.
- Menina desobediente! – dido Vania gritou assim que viu Katya.
A voz grave e nervosa do avô a assustou.
- Você fugiu e largo os gansos da sua avó sozinhos.
Apontando o dedo para ela, continuou:
- Como você acha que vamos sobreviver durante o inverno sem dinheiro que ganhamos com esses gansos?
Parecia que o coração de Katya ia parar. Os gansos estavam mortos. Um lobo ou uma raposa achou o bando e matou todos eles. Tudo porque tinha fugido para brincar. Ela baixo a cabeça.
- Eles poderiam ter morrido! – gritou dido Vania.
Katya levantou a cabeça.
- Quer dizer que eles não estão mortos?! – gritou de alegria.
-Não, mas poderiam estar – dido Vania falou ainda mais alto. – eles voltaram para casa sozinhos há alguns minutos. Sua avó esta muito brava com você, senhorita. Vá Lá atrás ver o que ela tem a lhe dizer.
- Sim, dido Vania – Katya sussurrou saindo depressa de perto do avô.
Baba Katya estava no quintal, trancando o redil dos gansos. As aves granavam suavemente á medida que se ajeitavam para dormi.
Baba Katya estava furiosa com a neta.
- Você deixou os meus gansos sozinhos. Como pôde ser tão desobediente?
Mais uma vez, Katya baixou a cabeça.
- Mas baba Katya, eles estão bem, não estão?
- Estão bem, apesar de você os abandona no caminho de volta para casa. Ou um lobo poderia ter acabado com o bando.
De repente, a raiva de baba Katya pareceu evaporar.
- Vá chamar dido Vania para jantar – ela disse com calma. Em seguida, virou-se e marchou para dentro de casa.
Após o jantar, baba Katya foi ao quarto da neta carregando uma faca grande e duas sacolas.
- Venha, Katya. Vamos trabalhar no jardim - ela disse entregando-lhe uma das sacolas.
Juntas, a idosa senhora e a jovem menina desceram a estrada de terra, saíram da vila entram no jardim da família.
Os girassóis estavam repletos de sementes. As flores pesadas pediam para baixo. Baba Katya agarrou um das flores e passou a faca no caule. Entregou a flor para Katya, que a acomodou em uma das sacolas. Enquanto trabalhavam, baba Katya começou a contar uma historia.
- Na década de 1930, quando ainda era jovem, Stalin decidiu acabar com a região. Você sabe quem foi Stalin, não sabe?
- Ele foi o segundo grande primeiro-ministro da gloriosa União Soviética – respondeu Katya, de acordo com o que seus professores tinham ensinado.
Baba Katya resmungou, mas sem fazer qualquer comentário. Apenas continuou a historia.
- Muitas pessoas ficaram com medo, por isso obedeceram e destruíram suas Bíblias. Às vezes, pessoas que trabalhavam para o governo invadiam as casas á procura de Bíblias. Se uma Bíblia fosse encontrada na casa, a família era obrigada a pagar uma multa. Algumas das pessoas que faziam buscas nas casas não acreditavam em Deus. Outras estavam apenas com medo, por isso fingiam que eram bons comunistas e ateus.
- O que elas faziam com as Bíblias? - perguntou Katya.
- Confiscavam todas as Bíblias que conseguiam encontrar – respondeu baba Katya. – Depois as levavam para o parque. Ali empilhavam as Bíblias e dançavam em volta delas.
Baba Katya balançou a cabeça.
- Que coisa terrível! - ela disse. – Uma blasfêmia. Mas as pessoas tinham mais medo do governo do que de Deus. Depois de dançarem ao redor de pilha de Bíblias, ateavam fogo para ver tudo queimar. Que coisa maligna! - os olhos de baba Katya encheram-se de lagrima. – pegaram a Bíblias de nossa família, que continha os nomes e as datas de casamento, aniversários e funerais. Ali estava o registro da familiar. Agora esta perdido para sempre.
Katya colocou a Mao carinhosamente sobre o ombro da avó.
- Sinto muito, baba Katya.
A idosa senhora tentou sorrir.
- Não fique com pena de mim, Katya. Sinta pena dos infiéis que blasfemaram contra Deus e contra a Bíblia.
- Por quê? O que aconteceu com eles? – Katya perguntou.
Baba Katya olhou para o horizonte. A luz do sol poente iluminou sua face enrugada.
- Lembre-se de uma família – disse a idosa senhora. – Pensavam que estavam seguros porque tinham confiscado muitas Bíblias e feito uma grande fogueira com elas. Era uma família grande. Muitos filhos, primos e tios. Alguns meses depois da queima de Bíblias, um dos filhos morreu afogado neste mesmo rio que cruza nossa vila.
Katya sentiu um calafrio subir pela espinha ao olhar para o rio. Naquele momento, não parecia perigoso, mas ela sabia que na primavera muitas vezes ele transbordava, formando fortes correntezas e redemoinhos.
- Em seguida, - baba Katya continuou – um dos primos foi atropelado por um carro e morreu. E um tio foi morto ao passar ao lado de um muro bem na hora em que ele desmoronou.
A essa altura, Katya estava boquiaberta. Quantas coisas terríveis aconteceram na mesma família!
- Outro filho morreu devido a uma febre incontrolável – complementou baba Katya. Os olhos negros brilhavam sob os últimos raios dourados de sol.
- Você percebeu, Katya? Não compensa rejeita a Deus. Não compensa blasfemar.
Katya prestava muita atenção.
- Nunca rejeite a Deus – baba Katya disse com firmeza na voz. – Nunca.
- Não farei isso – prometeu Katya balançando a cabeça. – e nunca blasfemarei. Mesmo quando descobrir o que isso significa, pensou consigo mesma.
Baba Katya bateu delicadamente no ombro da neta.
- Que bom! Deus castiga aqueles que O rejeitam. Agora, vamos para casa. Já esta escurecendo.
Cada uma colocou sobre os ombros uma sacola pesada, repletamente de girassóis, e começaram a andar de volta para casa.
Era assustador caminhar pela estrada ao escurecer. Vez após outra, Katya ouvia um ruído vindo do mato ou sentia uma brisa repentina bater em seu rosto. Tinha que se controlar para não chorar de medo. Repetia para si mesma que estava segura. Deus não a puniria. Ela não O havia rejeitado. Ela não havia blasfemado.
Mesmo assim, esticou o braço e segurou bem firme a não de baba Katya.
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